A noite dos milênios esconde a trajetória do homem, estagiário dos reinos mineral, vegetal e animal, para constituir-se gente no hominal. Registra sua história evolutiva nas diversas estações, longínquas e próximas no tempo e no espaço. No presente, registra suas vivências do hoje, projetando-lhe as experiências do futuro. Ao olhar para trás, o homem não consegue rememorar sua escalada ascensional. Contudo, ela existe e marca no inconsciente as diversas estações da vida infinita.
Nas primeiras experiências como ser humano, vividas na Terra, nem um corpo apropriado tinha o homem primitivo. Sua missão precípua era a de contribuir com o Laboratório da Vida Espiritual na construção de corpos mais bem aparelhados para receber os Espíritos egressos de outras esferas. Estes, em degredo, deveriam fomentar o progresso das sociedades dos tempos que se seguiram. A constante permutação de gametas orientada pela força impulsionadora da vida, obedecendo aos imperativos da Lei, produzia, na sucessão das gerações, invólucros carnais apropriados ao desenvolvimento das funções intelectuais que deram origem às grandes civilizações do Tigre e Eufrates e do Nilo.
Herdeiro de si mesmo, bebe o homem no saber que construiu ontem e edifica na Terra os grandes impérios guerreiros que se mantinham das conquistas e pilhagens impostas aos conquistados. Não obstante, já dominava as tecnologias da construção e da irrigação, que lhe permitiam edificações suntuosas e agricultura planejada, e lhe facultava a fixação territorial. Além disso, cultuava as artes e, por meio de suas múltiplas expressões da beleza, se manifestava de forma exuberante. Contudo, corrompido pelas paixões, tem sucumbido desde sempre em diversas experiências terrenas, endividando-se ante as imutáveis Leis Universais, inscritas em sua consciência. Leis não punitivas, mas educativas pelo processo da reencarnação, que lhe permite o recomeço e a reparação.
Este ser, migrante intersecular, em algum momento palmilha o caminho do Cordeiro e lhe tira o lenho infamante das costas, como o cireneu. Não o faz por piedade ou para converter a cruz em símbolo de sua redenção, mas para transformá-la na empunhadura da espada que fere, escraviza e mata. Na esteira dos evos, o perseguido torna-se perseguidor vingativo. Sua verdade são sofismas questionáveis. Seu julgamento é sempre condenatório. Sua sentença inapelável.
O Evangelho pulcro do Cristo é conspurcado pelos interesses escusos do homem, que o interpreta, na busca do poder temporal, segundo seus modelos esdrúxulos de moral permissiva. Dessa forma, em nome de Deus, assassina os diferentes, ora como cristãos, ora como mouros, na luta vã por um sepulcro vazio. Noutro momento, mata quem diverge dos seus dogmas, mesmo que respaldado na verdade científica. Vende o perdão a quem pode pagar e, numa alusão clara ao fogo eterno, condena à fogueira o herege que ousa não retroceder em seus princípios.
Em sucessivos voos de Ícaro, iludido, vê que lhe apontam o infinito. Contudo, néscio, não fixa o firmamento, mas o dedo que lho aponta. Nessa cegueira opcional, dormiu num século e despertou noutro. Entretanto, vendo, não enxergava, ouvindo, não escutava. Dessa forma, mergulhou em guerras sucessivas, que culminaram em duas grandes deflagrações mundiais, cenário do impressionante registro de noventa e cinco milhões de mortos – soma das duas – e do nascimento da ameaça nuclear, fantasma que assusta ainda nos dias atuais.
Andarilho do tempo, percebe, um dia, ser o Espírito mais que o corpo, cujas necessidades egoicas precisam ser caladas. As conquistas transitórias que exacerbam o orgulho e incensam a vaidade já não o seduzem mais. Cansado das aventuras inconsequentes, permite-se ser conquistado pela mansuetude do Evangelho. Genuflexo, rende glórias a Jesus. Enfim, de olhos postos no firmamento, entende que as guerras a serem lutadas são as interiores, que o inimigo não está lá fora, mas dentro de si mesmo. A espada em cruz, inúmeras vezes empunhada contra o semelhante, deve agora ser erguida para vencer as próprias deficiências morais.
O castelo do orgulho, onde moram a vaidade e o egoísmo, possui muralhas intransponíveis para quem não ousa fazer a viagem interior em busca de seu Eu Profundo. Quem o encontra, destrói o homem velho, soterra os mitos e reencontra as verdades, fazendo luz na noite dos enganos. Quando rompe o véu da escuridão secular, percebe que Jesus vive no coração dos homens e aguarda o momento de ser buscado como Caminho, Verdade e Vida.
Felizes os convidados para a ceia do Senhor…